Portugueses de Papel
Dicionário de personagens portuguesas da ficção brasileira
Linha de Investigação Brasil: literatura, memória e diálogos com Portugal (CLEPUL)
Não faltou razão a Ortega y Gasset [1] ao afirmar que o colonizador europeu se tornou um homem novo quando se fixou no Novo Mundo. A adaptação a um ambiente diferente e a um novo tipo de sociedade e economia, assim como o contacto com outros grupos humanos e outras culturas, necessariamente, teriam de modificá-lo. Daí que os mazombos, seus descendentes, ainda no período colonial, se diferenciassem dos reinóis e, até mesmo, com eles se confrontassem.
A figura do português emigrado para o Brasil, desde a colonização até a atualidade, tem sido amplamente estudada pela História e pela Sociologia. Tais estudos indicam, com frequência, uma polarização entre a figura do colonizador rico e explorador, que, por vezes, regressa à terra natal, e a do português pobre e rude, que se foi integrando nas camadas, em geral, subalternas da sociedade brasileira.
Embora se saiba que, desde sempre, a ficção brasileira inclui numerosas personagens portuguesas, o mais das vezes «emigradas» para o território americano – parte integrante de Portugal até à declaração de Independência do Brasil, ocorrida a 7 de setembro de 1822 – não se encontram, até ao momento, estudos aprofundados e abrangentes sobre o assunto.
Assim sendo, o Grupo de Investigação 6 do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa – atual Linha de Investigação Brasil: literatura, memória e diálogos com Portugal – criou o projeto Portugueses de Papel que visava colmatar essa lacuna. O primeiro passo para a sua criação foi dado, em 2010, com o trabalho de Pós-Doutoramento [2] de Juvenal Batella de Oliveira, acolhido pelo CLEPUL e supervisionado pela Professora Doutora Vania Pinheiro Chaves. O projeto propriamente dito foi, em 2013, oficializado, em parceria com a Cátedra Infante D. Henrique, e logo se internacionalizou com a adesão das Professoras Doutoras Ana Maria Lisboa de Mello (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Jacqueline Penjon (Sorbonne Nouvelle) e Tania Martuscelli (University of Colorado - Boulder).
Dedicado, inicialmente, a descobrir e a analisar as personagens do romance brasileiro que, nascidas em Portugal, transitaram temporária ou definitivamente para o Brasil, antes ou depois da sua separação do Império Colonial Português, este projeto ampliou o seu corpus para o estudo das várias espécies da prosa de ficção brasileira. Com os resultados destas pesquisas visava-se, desde logo, a construção de um site do projeto Portugueses de Papel no qual disponibilizar-se-ia o Dicionário de personagens portuguesas da ficção brasileira, criado especialmente para o efeito e dirigido pelas Professoras Doutoras Ana Maria Lisboa de Mello, Jacqueline Penjon, Tania Martuscelli e Vania Pinheiro Chaves.
Este dicionário é composto por verbetes que, redigidos pelos investigadores do projeto, receberam parecer favorável da Comissão Científica. A equipe de investigadores e a Comissão Científica congregam numerosos especialistas, pertencentes a diversas instituições e universidades nacionais e estrangeiras. A parceira com a Universidade do Colorado (Boulder) possibilitou a criação de um segundo site do Portugueses de Papel, no qual está inserido o mesmo dicionário, em português e inglês, acrescido de uma versão áudio dos verbetes.
Vastíssimo, o campo de pesquisa e escrita implicado no Dicionário de personagens portuguesas da ficção brasileira impõe um trabalho faseado. Por conseguinte, numa primeira etapa – que se estenderá por mais ou menos tempo em função do número de textos a analisar e de participantes empenhados nessa investigação – o projeto visou descobrir, nos textos oitocentistas, como os escritores brasileiros romancearam os seus antepassados lusos e/ou os seus contemporâneos portugueses. Este corpus integra obras cujos autores, geralmente interessados no processo de construção da identidade brasileira, manifestaram, por vezes, ressentimentos face à participação dos portugueses – que as personagens romanescas encarnam – na sociedade brasileira em formação.
Esta postura e a inversa deixam entrever que o levantamento e estudo das personagens portuguesas, não só dos escritos oitocentistas brasileiros, mas também dos que se lhe seguiram até aos dias de hoje, são matéria de grande relevância para o conhecimento da visão que os ficcionistas brasileiros têm da História e da sociedade a que pertencem. Tal conhecimento é igualmente importante para todos aqueles que se interessam pelas questões coloniais, migratórias e multiculturais.
A dificuldade de acesso aos textos oitocentistas – que continuarão a ser procurados e examinados – obrigou o projeto a avançar para uma segunda fase, alargando, cronologicamente, o seu campo de pesquisa a fim de manter-se ativo. Fixou-se como baliza os escritores que despontaram entre as primeiras décadas do século XIX e 1949, deixando-se para uma etapa posterior o período seguinte.
Complementarmente têm sido realizados seminários e encontros para apresentação dos resultados das pesquisas em curso e/ou para analisar e debater questões correlatas, a par com colóquios abertos a participantes externos, de que resultará uma benéfica troca de conhecimento sobre o assunto. Em simultâneo, os investigadores do Portugueses de Papel são convidados a publicar, no site, artigos sobre a matéria e temas afins.
Por fim, a concretização do projeto permitirá reconstruir a genealogia dos mal-entendidos, das idealizações e dos preconceitos que se misturaram e misturam ainda à imagem de Portugal e dos portugueses no Brasil, o que foi/é tantas vezes presença incômoda nas relações que se estabeleceram e estabelecem, nos nossos dias, entre estes dois países tão próximos e distantes. Contribuirá outrossim para divulgar, na comunidade científica internacional, o patrimônio literário brasileiro.
Vania Pinheiro Chaves (Coordenadora do projeto Portugueses de Papel)
[1] Apud V. P. H. Ureña, Lterary Currents in Hispanic America, Massachutts, Havard University, 1945, p. 38.
[2] Na condição de bolseiro da FCT, Juvenal Batella de Oliveira, escreveu um ensaio, em dois volumes, intitulado O português de papel. Os personagens portugueses do século XIX (Lisboa: CLEPUL, 2012), no qual adotou um critério diferente do nosso, posto que se considerava portugueses todos os que, no período colonial, tinham ascendência portuguesa.